TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADES
Da incipiente
conceituação que atribuía o território à área de predominância de uma espécie
animal ou vegetal associado a um mero instinto e à agressividade, passando pela
sua definição calcada na centralidade do poder do Estado, como seu defensor,
até o levantamento dos diversos usos de que este é cenário, muitas foram as
concepções teóricas sobre território e territorialidades. Como nos elucida
Milton Santos, os conceitos não devem ser utilizados como se fossem as
explicações finais, devido ao fato de que, em um certo momento, ele perde o seu
valor em decorrência da transição social rumo a uma nova realidade.
Ao longo do tempo,
foi sendo percebido o quanto a correlação extremada entre o conceito de
território e a figura do Estado menosprezava a importância de outras escalas,
já que tal redução ignora os processos de territorialização na estrutura
interna das sociedades e as alterações provocadas por aqueles. Milton Santos
ressalta que a contraposição de escalas alude a arenas políticas, de disputa,
que não se reduzem unicamente à escala nacional. Todavia, ao se reconhecer o território além
de sua perspectiva estatizada, corre-se o risco de delimitá-lo a uma concepção
transnacionalizada. O território condiciona a ação dos seus atores, já que as
ações que operam sobre ele dependem da sua própria constituição. O
entendimento, por sua vez, das diferenciações regionais e do dinamismo das suas
relações tem norteado a busca por uma nova interpretação da sociedade
brasileira.A noção de território como construção social e produção do espaço
credencia as diversas discussões acerca do tema, fazendo com que os geógrafos
debrucem-se sobre os desdobramentos de tal análise.
Cabe,
primeiramente, estabelecer uma diferenciação entre os termos
"território" e "territorialidade", tendo em vista que não é
rara substituição de um pelo outro, sem qualquer critério, um mero recurso de
dissertação. Milton Santos descreve o território como um "nome
político" para o espaço de um país, já que a existência de um país pressupõe
um território, mas a existência de uma nação nem sempre pressupõe um território
ou a existência de um Estado. Assim, há territorialidade sem Estado, como já
foi explicitado, mas não é possível um Estado sem território.
Amélia Luiza
Damiani reforça a noção de que o desatrelamento do âmbito estatal fez com que o
termo territorialidade ganhasse maior ênfase e passasse a ser utilizado para a
definição dos usos do território marcados pelas relações de poder. Ela chama
atenção para o risco de se ignorar a relação entre as esferas política e
econômica.
Milton Santos
destaca o caráter híbrido do território e sua forma impura. Esta atenta para o
fato de que o território surge de uma interferência na sociedade, do decorrer
histórico. E, híbrido, porque possui diversos matizes, que acabam por
estabelecer uma exigência epistemológica que implica a constante reavaliação
deste conceito. Este é, sobretudo, visto como unidade e diversidade.O que há de
permanente, quando se discute território, é o seu quadro de vida, a construção
que o torna real, a sociedade como motor de sua constante transformação. A
partir da análise dos componentes da sociedade, o autor discute ainda a
existência de atores hegemônicos e não-hegemônicos, sendo estes últimos os distanciados
de uma vivência mais global de sua nação. Aqui, nação é abordada segundo dois
parâmetros de território: como recurso e como abrigo. Na primeira forma,
supõe-se ser o território do outro, de onde se busca extrair as riquezas dele
provenientes - vide os territórios coloniais-, e, no segundo caso, sugere o
espaço da nação que implica proteção, casa, do qual, inclusive, ele afirma ser
esta e semente dos movimentos nacionalistas de oposição à imagem imposta pelo
exterior. Esta rechaça o que lhes é caro, visando, sobretudo, a sua dominação.
Ratzel, pai da
antropogeografia, concebe o território a partir da noção de propriedade baseada
na centralidade do Estado, como defensor do mesmo. A idéia de que o território
se identifica, cada vez mais, com o espaço nacional, pelo controle do Estado
Nacional, empobrece a perspectiva inicial de Ratzel, que visava, de fato,
enfatizar o conteúdo histórico do conceito, enxergando o território como
resultado de tal processo.
Raffestin considera
território como fruto da apropriação de um espaço - ou seja, sua
territorialização - concreta ou abstratamente, por um ator sintagmático, ou
seja, que, através de sua ação, conseqüentemente, revela relações marcadas pelo
poder. O autor vale-se das idéias de Marx, de que o território se define pelo
uso que se faz dele, não pelo seu domínio, relevando a apropriação sobre a
propriedade. O espaço é, pois, pré-existente a qualquer ação humana, visto que
possui valor de uso, tão somente, não de troca. Qualquer projeto no espaço
culmina numa representação simbólica, que vem a relevar a imagem desejada de
determinado território, sendo esta construção da realidade um instrumento de
poder desde as origens do homem, visto que relações de poder também se formam
através de diferentes interesses sobre determinadas áreas geográficas. Assim
como Milton Santos, Raffestin reflete sobre a relação entre saber e poder, ou
seja, a importância da informação, tornada conhecimento, para o exercício do
poder.
A partir deste
sistema de representações, o autor destaca que os atores procederão à
repartição das superfícies, à implantação de nós e à construção de redes. Este,
o chamado "essencial visível", provém da necessidade de organização
do campo operatório em qualquer sociedade e leva à interação política,
econômica, cultural ou social entre diferentes locais, dando margem a um jogo
de oferta e procura dos indivíduos ou grupos de indivíduos. Tal sistema de
tessituras organizado hierarquicamente visa ao controle sobre o que pode ser
distribuído, alocado ou possuído.
Marcelo José Lopes
de Souza analisa o território sob o seu aspecto
político, como um instrumento de exercício de poder, ressaltando o
agente da dominação e aquele que é dominado.
Concebido o campo de forças, estabelece-se, concomitantemente, o seu
caráter de alteridade: as diferenças entre "nós" e os
"outros". Ao pensar, simultaneamente, em horizontalidades -- que
clama pela força social dada a força acentuada das desigualdades -- e
verticalidades -- que impõem suas regras de maneira hierarquizante-, o autor
aproxima-se cada vez mais do objetivo proposto por Milton Santos para a
reformulação conceitual. Seu enfoque marxista é denotado a partir de tal
premissa, visto que seu estudo considera a produção da desigualdade social como
fator primordial da organização interna das sociedades em pequenos grupos de
controle, discordando, contudo, de Raffestin, como assinalarei adiante.
Desta maneira,
Lopes de Souza destaca as territorialidades complexas do cotidiano urbano,
como, por exemplo, o território do efêmero, assim chamado dada a sua existência
periódica, cíclica. Sobre isto, o autor cita a apropriação em determinado
momento por grupos específicos de um espaço público que os discrimina, como é o
caso dos nordestinos e dos camelôs.
A favela também ilustra
esta idéia, já que a territorialidade de cada facção do tráfico, por exemplo,
forma uma "rede" complexa, já que une nós de irmanados pelo
pertencimento a um mesmo comando, além de os intercalar com os nós de outras
"redes". Estas, superpostas ao mesmo espaço e disputando a mesma área
de influência econômica, o mesmo mercado consumidor, forma uma malha
significativamente complexa, culminando no conflita ressaltando pelo autor. Tal
conflito resulta, justamente, da territorialidade de baixa definição destes
núcleos, que só virá a ser superada quando uma facção derrotar a outra.
A partir deste
raciocínio, o processo de constituição das organizações criminosas no Rio de
janeiro remete à necessidade de se estabelecer uma ponte conceitual entre
"território" e "rede". Com relação à análise do
"território contínuo", sua estrutura espacial interna tende a ser
considerada, visto que consiste numa superfície. Contudo, quando se trata do
"território descontínuo", que consiste numa rede a articular dois ou
mais territórios contínuos, sendo os seus nós pontos adimensionais, tende-se a
não considerar a investigação de suas estruturas internas. Esta articulação
leva à derrocada a concepção clássica de território de que há exclusividade de
poder em relação a um dado território. Há, portanto, superposição de diversos
territórios, com formas variadas e limites não-coincidentes, além de,
inclusive, contradições entre as diversas territorialidades, devido a atributos
entre os respectivos poderes.
Tal pressuposto teórico leva Lopes de Souza de encontro a
Raffestin, já que este não discerniu que o território não é o substrato, o
espaço em si, mas um campo de forças, onde há relações de poder espacialmente
delimitadas e operando sobre um substrato referencial, posto que o substrato
material sequer carece de solo, podendo ser constituído por uma superfície
líquida, por um mar territorial, por exemplo. Segundo Milton Santos, nenhum
lugar se "auto-explica", já que não há um lugar autárquico. Os
lugares ocorrem espontaneamente, conectando-se por solidariedade aos demais,
que, por sua vez, sofrem os mesmos processos e movem a realidade que nos cerca.
A confusão entre substrato espacial e território provém dos mitos gerados pelas
ideologias do território, o que nos leva a crer que houve perpetuação das
representações espaciais territorializantes, mesmo depois da organização
espacial te sido modificada ou entrado em decadência.
A territorialidade,
por conseguinte, tida no singular, diz respeito às relações de poder
espacialmente delimitadas, operando sobre um substrato referencial, ou seja,
explora a interação dos seres humanos mediatizada pelo espaço. Por sua vez, o
mesmo termo, no plural, relaciona-se aos tipos gerais em que podem ser
classificados os territórios, conforme sua própria dinâmica.
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